Frase do dia
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quarta-feira, 27 de julho de 2011

A Ponte

Toda corrente de água desliza entre duas margens.
Margens que detêm e ordenam.
Que a impedem de invadir os campos.
Que lhe traçam um caminho.
Duas margens que permitem a essas águas formar um todo
e realizar sua tarefa:
“regar as planícies através das quais desliza.”
E as margens ficam distantes uma da outra…
Elas, porém, podem unir-se, aproximar-se, fundir-se quase,
quando sobre as águas se estende uma ponte.
Olhando a ponte sente-se a tarefa imensa
e ao mesmo tempo agradável, executada por ela.
Como um abraço amigo que aproxima duas separações.
Como um diálogo silencioso faz conversarem duas solidões.
Como a mão estendida fraterniza dois estranhos.
Se a ponte pudesse sentir, poderíamos, sem dúvida, qualificá-la de feliz.
Feliz por ser capaz de tornar o outro feliz.
E nunca se colhe felicidade maior do que quando
se semeia a felicidade.
A ponte tem, para cada um de nós, um profundo
e significativo simbolismo.
É a lição perene, silenciosa e rica, no dia-a-dia,
da sua missão de ligar e aproximar,
de encurtar distâncias, de separar abismos.
Diante de uma ponte nos ocorrem reflexões
que alguém escreveu:
“Em êxtase contemplativo olho a ponte, admiro a ponte,
escuto a linguagem da ponte…
…Sou forte, terrivelmente forte.
Resisto a tudo e permaneço sempre estática,
mas perseverante em meu posto de serviço.
O segredo da minha força?
De minha perseverança?
De minha grandeza?
Nasci para unir!
Vivo para unir!
Sirvo para unir!
Como gostaria de ser também uma ponte!
Para unir a terra aos céus!
Unir os desunidos…
Unir os desencontrados…
Unir os corações!!!
© Hugo Di Baggio

terça-feira, 19 de julho de 2011

A menina das maçãs


Por Herman Rosenblat *
Agosto de 1942 - Piotrkow, Polônia.


Naquela manhã o céu estava sombrio, enquanto esperávamos ansiosamente. Poucas horas antes todos os homens, mulheres e crianças do gueto judeu de Piotrkow foram arrancados de suas casas e arrebanhados na praça do gueto - para remoção coletiva, segundo os rumores que se espalhou.

Meu pai havia falecido recentemente de tifo, que se alastrara através do gueto abarrotado. Meu maior medo era separarem nossa família.

“O que quer que aconteça,” murmurou Isidore, meu irmão mais velho. “Não lhes diga a sua idade verdadeira; diga que tem dezesseis anos”.

Apesar de magro em virtude da falta de alimentos eu era bem mais alto do que outros meninos de 11 anos que conhecia; talvez poderia ser confundido e assim, ser considerado valioso como um trabalhador.

Um homem da SS se aproximou com passos firmes, com botas estalando nas pedras grosseiras do piso. Olhou-me de cima a baixo e perguntou minha idade. “Dezesseis”, eu disse. Ele mandou-me ir à esquerda, onde já estavam meus três irmãos e outros jovens saudáveis.


Herman
Ela jamais havia falado de forma tão aspera assim! Depois eu entendi porque ela havia falando daquela forma comigo: ela estava me protegendo. Ela nos amava tanto que, apenas naquela única vez, ela fingiu não fazê-lo. Foi a última vez que a vi.

Meus irmãos e eu fomos transportados de trem até a Alemanha. Semanas depois, confinado dentro de um vagão de gado que parava várias vezes por dia em virtude de incotáveis barreiras e paradas, chegamos ao campo de concentração de Buchenwald e fomos imediatamente conduzidos a uma barraca lotada. No dia seguinte recebemos uniformes e números de identificação.

“Não me chamem mais de Herman”, eu disse aos meus irmãos. “Chamem-me 94938?.

Colocaram-me para trabalhar no crematório do campo, carregando corpos em um elevador manual. Ao fim do primeiro dia de trabalho eu também já me sentia como morto; insensibilizado por aquele horror eu me tornara simplesmente um número. Logo, meus irmãos e eu fomos mandados para Schlieben, um dos sub-campos de Buchenwald, perto de Berlim.

Em uma certa manhã pensei que ouvi a voz de minha mãe: “Filho” disse ela, suave mas claramente; “Vou mandar-te um anjo.” Então acordei, havia sido apenas um sonho! Um lindo sonho! Mas nesse lugar não poderia haver anjos. Havia apenas trabalho, fome, medo, dor e morte…

Dias depois, caminhando sozinho entre as barracas do campo, próximo a uma das cercas de arame farpado, onde os guardas não podiam enxergar facilmente, observei alguém do outro lado da cerca: uma pequena menina com suaves, quase luminosos cachinhos. Ela estava meio escondida atrás de uma bétula. Dei uma olhada em volta para certificar-me de que ninguém me via, e a chamei baixinho, em alemão.

“Você tem algo para comer?” Mas ela não entendeu. Aproximei-me mais da cerca e sempre olhando para os lados repeti a pergunta em Polonês. Eu estava magro e raquítico, com farrapos envolvendo meus pés, mas a menina parecia não ter medo e se aproximou. Em seus olhos eu vi vida. Ela pegou uma maçã do seu casaco de lã e a jogou sobre a cerca. Agarrei a fruta e, assim que comecei a fugir, ouvi-a dizer baixinho, “Virei vê-lo amanhã”!

Daquela dia em diante, com precauções sempre renovadas, sempre que podia voltava ao mesmo local da cerca, na mesma hora. Ela estava sempre lá, com algo de comer para me dar - um pedaço de pão ou, melhor ainda, uma maçã. Em todos aqueles momentos jamais ousávamos falar ou demorarmos. Sermos pegos significaria morte para nós dois. Não sabia nada sobre ela, apenas que era uma menina de fazenda entendia Polonês. Qual era o seu nome? Porque ela arriscava sua vida por mim?” Boa parte de minhas poucas esperanças em sobreviver estava naquele pequeno suprimento de alimentos que aquela menina, do outro lado, me trazia.

Aproximadamente sete meses depois, eu e meus irmãos fomos abarrotados em um vagão de carvão e enviados para o campo de Theresiensatdt, na Tchecoeslováquia. “Não volte”, eu disse para a menina naquele dia. “Estamos partindo”. Voltei-me em direção às barracas sem olhar para trás, com medo de ser apanhado. Nem mesmo disse adeus a pequena menina, cujo nome eu nunca aprendi. A menina das maçãs.

Permanecemos em Theresienstadt por três meses. A guerra estava diminuindo e as forças aliadas se aproximando, muito embora meu destino parecia estar selado: estava agendado para morrer na câmara de gás às 10 horas da manhã do dia 10 de maio de 1945. Soube disso através de outro prisioneiro que limpava os escritórios do campo e sempre que possível lia ordens do camando afixados em alguns quadros. Assim, por muitas vezes ficavamos sabendo o que iria ocorrer nos dias seguintes. Quando soube disso, não chorei, não tinha mais lágrimas para chorar. Não tinha mais medo da morte; na verdade, algumas vezes a desejava… Mesmo assim, nos três crepúsculos silenciosos das noites que antecederam o dia marcado, tentei me preparar para minha morte.

Por tantas vezes a morte pareceu pronta para me reclamar, mas de alguma forma eu sobrevivi. Agora, tudo estava acabado. Pensei nos meus pais. Ao menos, pensei, estaríamos reunindos novamente.

No entanto, pouco antes das 8:00 horas do dia em que estava marcado para morrer, ocorreu uma comoção no campo. Ouvi explosões, tiros, gritos… Olhei pela porta da barraca onde estava e vi pessoas correndo em todas as direções através do campo. Juntei-me aos meus irmãos e perguntei-lhe o que estava ocorrendo, mas não sabia de nada. Minutos depois um prisioneiro entra no barraco onde estávamos e grita: “Os russos estão aqui, os alemães estão mortos ou fugiram, os portãos do campo estão abertos!” Saímos e vimos todos correndo para for a do campo, então corremos também sem sabermos para onde íamos.

Surpreendentemente, eu e meus irmãos sobrevivemos. Não tenho certeza como, mas sabia que aquela menina das maçãs tinha sido uma das razões da minha sobrevivência.

No local onde o mal parecia triunfar, a bondade de uma pessoa gerou-me esperanças e acabou contrinuíndo para salvar a minha vida.

Minha mãe havia prometido enviar-me um anjo, e o anjo apareceu…

Com a ajuda e piedade de tantos que encontrei pelos caminhos que percorri depois da libertação do campo, meses depois consegui chegar à Inglaterra, onde fui socorrido pela Caridade Judaica: me alojaram em uma hospedaria com outros meninos que sobreviveram ao Holocausto e em uma escola onde, além do inglês e disciplinas regulares estudavamos eletrônica. Cinco anos depois fui para os Estados Unidos, para onde meu irmão Sam já havia se mudado. Servi no Exército por dois anos durante a Guerra da Coréia e retornei a Nova Iorque.

Em agosto de 1957, com economias que fiz do salário que recebi no exército, abri uma lojinha de consertos eletrônicos. Estava começando a estabelecer-me, a verdadeiramente iniciar uma nova vida…

Um dia, meu amigo Sid, que conheci da Inglaterra, me telefonou.

“Tenho um encontro. Ela tem uma amiga polonesa. Vamos sair juntos?”

Um encontro às cegas? Não, isso não era para mim.

Mas Sid insistiu tanto que poucos dias depois fomos ao Bronx buscar a garota com quem Sid iria sair, e a amiga dela, a polonesa Roma.

Tenho que admitir, para um encontro às cegas, não foi tão ruim. Roma era enfermeira em um hospital do Bronx. Ela era gentil e esperta. Bonita, também, com cabelos castanhos cacheados e olhos verdes amendoados que faiscavam com vida.

Nós quatro nos dirigimos até Coney Island. Roma mostrou ser uma boa companhia com quem era fácil falar e gostoso de se estar junto.

Descobri que ela era igualmente cautelosa com encontros às cegas.

No início, estávamos apenas fazendo um favor aos nossos amigos. Demos um passeio na beira da praia, gozando a brisa salgada do Atlântico e depois jantamos perto da margem. Não poderia me lembrar de ter tido momentos melhores.

Voltamos ao carro do Sid, Roma e eu dividimos o assento traseiro.

Como judeus europeus que haviam sobrevivido à guerra, sabíamos que muita coisa foi deixada sem ser dita entre nós. Ela puxou o assunto, “Onde você estava”, perguntou delicadamente, “durante a guerra?”

“Nos campos de concentração”, disse. Terríveis memórias, irreparáveis perdas… Tentei esquecer, mas como esqueçer tantas dores?

“Minha família se escondeu em uma fazenda na Alemanha, próximo de Berlim”, disse-me ela. “Meu pai conhecia um padre, e ele nos deu papéis arianos.”

Imaginei como ela deve ter sofrido também, medo, uma constante companhia. Mesmo assim, aqui estávamos, ambos sobreviventes, em um mundo novo.

“Havia um campo perto da fazenda”, continuou Roma. “Eu via um menino lá e sempre que possível lhe jogava alguma comida, especialmente maçãs.”


Herman e Roma
“Ele era alto, magro e faminto. Devo tê-lo visto, quase diariamente, por uns seis meses.”

Meu coração estava aos pulos, descontrolado. Não podia acreditar. Isso não podia ser!!!

“Ele lhe disse, um dia, para você não voltar porque ele estava saindo de Schlieben?”.

Roma me olhou estupefata, de uma forma tão profunda que senti como se meus olhos tivessem sidos atravessados. “Sim!”.

“Era eu!”.

Estava para explodir com um misto de alegria e susto inundado meu coração. Não podia acreditar! Reencontrei a menina das maçãs, o meu anjo!

“Não vou deixar você partir”, disse-lhe em seguida. E na trazeira daquele carro, naquele encontro às cegas, pedi-a em casamento. Não queria esperar.

“Você está louco!”, disse ela. Mas convidou-me para conhecer seus pais no jantar do Shabbat da semana seguinte.

Havia tanto que eu ansiava descobrir sobre Roma, mas as coisas mais importantes eu sempre soube: sua firmeza, sua bondade. Por muitos meses, nas piores circunstâncias, ela veio até a cerca e me trouxe esperanças.

Semanas depois, com o consentimento da família, ela disse sim. Hoje, após quase 50 anos de casamento, dois filhos e três netos, ela continua sendo meu anjo e eu jamais a deixarei partir…

Se alguém viver quatrocentos anos, ele dificelmente passará pelas experiências que passei em sessenta…

* Herman Rosenblat, sobrevivente do holocausto, técnico eletrônico aposentado. A vida não permitiu que Herman celebrasse seu Bar Mitzvah (cerimônia religiosa onde os meninos judeus marcam sua entrada na maioridade; mas em fevereiro de 2006, então com 75 anos de idade, finalmente o fez…

Notas

1. Os nomes verdadeiros dos atores reais desta história de vida são Herman e Rona Rosenblat. Os nomes reais foram revelados posteriormente pelos próprios protagonistas, em reportagem (com fotos do casal) da revista Guideposts, na edição de agosto de 2006, para desmentir boatos que essa história não era verdadeira.

2. Depois da entrevista à revista Guideposts, o casal se recolheu e não concedeu mais entrevistas à imprensa.

3. O nome Herman Rosenblat conta no catálogo telefônico de Miami (edição 2007), o que faz supor de que pelo menos um deles ainda está vivo.

4. Esta história real foi adaptada para o cinema e filmada pela Atlantic Overseas Pictures em parceria com a EuroCo Productions, com o título Flower of the Fence, estrelado por Richard Dreyfuss com o nome de A CERCA.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Há males que vêm para o bem

Por uma pequena vila um dia passou uma manada de cavalos a caminho da capital do reino. Um garoto encantou-se por um pequeno potro, e acabou ganhando o cavalinho de presente do cavaleiro-chefe. “Que sorte teve seu filho”, comentou um vizinho com o pai do garoto. “Pode ser sorte ou pode ser azar”, respondeu o pai. O tempo passou, e o cavalinho crescia ao lado do garoto feliz. Entretanto, um dia o cavalo fugiu.“Que azar teve seu filho”, interpretou o mesmo vizinho. “Pode ser azar ou pode ser sorte”, argumentou o pai. Alguns dias depois o potro voltou para o curral, trazendo com ele uma pequena manada de cavalos selvagens. “Que sorte teve seu filho”, insistiu o vizinho palpiteiro.Mais uma vez o pai ponderou que “pode ser sorte ou pode ser azar”.

O menino pôs-se, então, a domar os cavalos, e nessa tarefa acabou caindo e fraturando a perna, o que o deixou imobilizado, sem poder montar nem andar. “Que azar teve seu filho”, disse o mesmo homem. “Pode ser azar mas pode ser sorte”, retrucou o pai, mais uma vez. Foi quando o país a que pertencia a aldeia entrou em guerra e todos os jovens foram convocados e enviados para batalhas sangrentas, mas o jovem não foi, pois estava acamado. “Que sorte teve seu filho”... – e assim a história pode não ter fim.

Esta pequena metáfora nos lembra que nem sempre a conseqüência dos fatos será como seu prenúncio.Uma boa notícia pode se transformar em uma má situação, e a recíproca é verdadeira, pois alguns males que acontecem em nossas vidas podem se transformar em coisas boas, melhores até do que se o mal não tivesse acontecido. Pode ser apenas coincidência, ou pode derivar da capacidade que o ser humano tem de se recuperar, reorganizar os fatos e ter, no final, um balanço positivo a partir de situações aparentemente negativas. É quando dizemos, otimistas, que há males que vêm para o bem. Mas o que há por trás dessa afirmação?

Imprevistos acontecem
À medida que aumenta a sofisticação do mundo, com um número multiplicado de variáveis interferindo em nossas vidas, cresce também a possibilidade de que fatos ocasionais mudem os rumos, alterem os planos e provoquem novas situações, ora melhores, ora piores do que as imaginadas originalmente. Nem sempre as coisas são como gostaríamos, nem como planejamos. É quando afirmamos que imprevistos acontecem, e tratamos de lidar com os fatos novos.Nessas horas entra em jogo a capacidade humana de transformar em ganho o que aparentemente deveria ser uma perda. Mas será que é simples assim?

Imaginemos duas situações diferentes e semelhantes ao mesmo tempo. A primeira: você tem um emprego em que é feliz e de repente é despedido. A sensação inicial é de desespero, ainda que controlado. A auto-estima cai a níveis baixíssimos, o mundo parece hostil e você se sente sozinho. Entretanto, uma semana depois, você é chamado para ocupar uma vaga em outro emprego, com maior salário, melhor ambiente de trabalho e ótimas perspectivas. Tudo deu certo e você – que não teria conseguido o emprego novo se não tivesse perdido o anterior – passa a repetir: há males que vêm para melhor.

A segunda: você resolve abrir seu próprio negócio, usando sua experiência no setor, suas economias e, principalmente, seu otimismo.Mas as coisas não acontecem como planejado. Os fornecedores não são confiáveis, os empregados não se comprometem, os clientes não aparecem.O tempo passa, você tenta todas as saídas,faz propaganda, troca os empregados, consegue um empréstimo no banco para capital de giro. Mesmo assim o sufoco continua e você sente que precisaria de mais tempo para consolidar o empreendimento. Você não tem esse tempo, pois as contas estão vencendo. O final é previsível: você fecha a empresa, fica endividado, sem perspectivas e sem amigos. E leva, a partir de então,muito tempo para se levantar na vida de novo. Mas hoje, quando se lembra do ocorrido, você considera que foi um grande aprendizado, que o fortaleceu e o tornou mais prudente e sábio, e até reconhece que foi bom ter passado por aquele sufoco.

No primeiro caso, o final feliz parece ter vindo de algo mágico, independente de sua vontade. Já no segundo, o bem veio do inestimável aprendizado que só uma experiência ruim pode conceder. Sim, há quem diga que todos os males podem terminar por nos oferecer algo de bom, dependendo apenas da interpretação do fato, o que depende da percepção e da lucidez da pessoa.

Desespero positivo
O filósofo dinamarquês Sorën Kierkegaard, por exemplo, jogou uma luz sobre o assunto quando, em 1849, publicou sua obra O Desespero Humano – Doença até a Morte (Martin Claret), que se transformou em uma espécie de manual sobre os desesperos que nos acometem e seu significado para nossa evolução.Afinal, diz ele, todos os humanos alguma vez se desesperam diante dos males que pertencem à vida natural. A diferença está em o que fazemos com esse desespero e o que aprendemos com ele.

Kierkegaard divide o desespero em duas categorias: o desespero-fraqueza e o desespero-desafio. O primeiro deriva do desejo de não sermos o que somos – ou negar os fatos. O segundo deriva do desejo de sermos o que não somos – ou transformar os fatos.

Não parece,mas a diferença é imensa. Quando não desejamos ser o que somos, ou quando negamos a realidade, estamos negando nossa essência, e então nos transformamos em inimigos de nós mesmos. Já quando desejamos ser o que não somos ou queremos mudar a realidade, podemos estar diante da possibilidade de nosso crescimento pessoal. Afinal, desejamos ser aquilo que não somos ainda – e uma nova possibilidade se abre.

Isso também acontece com fatos externos a nós. Quando sofremos a perda de um ente querido, por exemplo, é claro que gostaríamos de negar o fato, mas ele é inegável, pois pertence à ordem natural das coisas. Já quando aceitamos a perda e tratamos de elaborar a nova realidade – por mais dura que seja –, abrimos uma nova possibilidade em nossa vida.

Os males que acometem o homem funcionam como um espelho. Quando se mira nele, este vê sua verdadeira essência, que pode ser sua miséria ou sua grandeza, ou ambas. Os momentos maus, de sofrimento, são a melhor oportunidade que temos de entrar em contato real conosco mesmos. Entretanto, há quem negue a oportunidade, transferindo a responsabilidade para as circunstâncias.Nesse caso,não há a menor chance de o mal vir para o bem.

Considera-se o primeiro desespero como uma fraqueza, pois não podemos negar o que somos sem ofender nossa essência. Isso é um ato covarde, fraco. Já o segundo desespero é um desafio por abrir a possibilidade de ser mais do que se é. É conseguir mais do que se conseguiu até então. Significa patrocinar a evolução, o que não deixa de ser igualmente desesperador, pelas dificuldades naturais da mudança.

Quando negamos a nós mesmos, e nada fazemos a respeito disso, é difícil que este mal venha para o bem. Mas quando a fraqueza vira desafio e a autonegação vira mudança e aprimoramento de rumos, então o bem sempre virá, como conseqüência natural do próprio aprendizado. Diz o filósofo: “Se eu arrisco e me engano, que seja – a vida castiga-me para me socorrer. Todavia, se nada arriscar, quem me ajudará?”

Nesse sentido, concluímos que o desespero é bom, pois seu oposto é a apatia, e esta produz imobilidade e mata a oportunidade. Kierkegaard afirma que as infelicidades que o homem encontra pelo caminho o fazem aproximar-se de si mesmo e, ao invés de extinguir-se, ele se refaz, torna-se um novo ser, melhor e mais forte.

Crise como crescimento
As crises são boas quando terminam bem, e elas sempre podem terminar bem se promoverem aprendizado, crescimento. A própria palavra “crise” se auto-explica. Ela deriva do grego krinos, que tem um significado esplêndido: algo como avaliar para julgar, ou considerar para decidir, ou ainda selecionar para escolher. O momento de crise é, então,um momento de escolha, e nele está incluída a avaliação do fato,o julgamento dos valores, a decisão pela melhor alternativa.A crise é educadora, um privilégio. Aqueles que tiveram poucas crises na verdade foram poupados do amadurecimento, como acontece quando os pais superprotegem seus filhos ou quando os professores não provocam o pensamento de seus alunos – apenas passam conhecimentos dogmáticos, desprovidos de significado.

Da China também recebemos uma luz de sabedoria milenar. Em mandarim, o ideograma que simboliza crise é formado pela junção de dois outros ideogramas, sendo que um representa perigo enquanto o outro representa oportunidade. Em nossa língua ocidental essas duas palavras são diferentes e não guardam, entre si, nenhuma relação. Por isso achamos que crise é perigo e não oportunidade. E é justamente essa visão parcial que diminui nossa chance de transformarmos os males em bens. Quando o perigo é interpretado como oportunidade utilizamos a crise a nosso favor e, neste caso, o mal realmente vem para o bem.