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quinta-feira, 17 de maio de 2012

E os velhos se apaixonarão de novo…

Meu amigo não chegou na hora marcada. Telefonou dizendo que estava num velório. Chegou atrasado, sorridente. E me contou que fora no velório que lhe viera aquela felicidade. Pensei logo que o morto deveria ser seu inimigo. Não era. Um tio, muito querido, pessoa doce, 82 anos. E ele me contou uma história de um amor… Parece que seu velho corpo não suportara a intensidade da felicidade tardia, e os seus músculos não deram conta do jovem que, repentinamente, dele se apossara.

O amor surgira no tempo em que ele é mais puro: a adolescência. Mas naqueles tempos havia uma outra AIDS, chamada tuberculose, que se comprazia em atacar as pessoas bonitas, os artistas, os apaixonados — esses eram os grupos de risco. Pois ela, a tuberculose, invejosa da felicidade dos dois, alojou-se nos pulmões do moço, que teve de ir em busca de ar puro, no alto das montanhas, sanatório, tal como Thomas Mann descreve em seu livro — ”A montanha mágica”. Quem ia para tais lugares despedia-se com um “adeus”, um olhar de “nunca mais”. Na melhor das hipóteses, muitos anos haveriam de passar antes do reencontro.

Imagino o sofrimento da jovem dividida: o corpo, naquela casa, a alma por longe terra! Na vida daquela menina, que surda, perdida guerra… (Cecília Meireles).

Valeram mais os prudentes conselhos da mãe e do pai: não trocar o certo pelo duvidoso. Vale mais um negociante vivo que um tuberculoso morto. E aconteceu com ela o que aconteceu com a Firmina Dazza, que de longe e às escondidas namorava o Fiorentino Ariza, na estória de Gabriel García Márquez Amor nos tempos da cólera, que foi obrigada pelo pai a se casar com o doutor Urbino: não se troca um médico por um escriturário. Casou e com ele ficou até que, depois de 51 anos, veio a libertação… Como também o foi o amor de T.S. Eliot e Valerie. Todos eles amores de velhice…

Amor de mocidade é bonito, mas não é de espantar. Jovem tem mesmo é que se apaixonar. Romeu e Julieta são aquilo que todo mundo considera normal. Mas o amor na velhice é um espanto, pois nos revela que o coração não envelhece jamais. Pode até morrer, mas morre jovem. “O amor retribuído sempre rejuvenesce”, dizia Eliot, no vigor de sua paixão, aos 70 anos…

A história que meu amigo contou era parecida com a do Florentino e da Firmina. Só que a espera foi muito maior. Amor de adolescência interrompido – cada um seguindo seu caminho, diferentes, outros amores, famílias. Mas o tempo não consegue apagar. A psicanálise acredita que no inconsciente não há tempo… Somos eternamente jovens.

Ela casou. Ele casou. Nunca mais se viram. Quando ele tinha 76 anos, ficou viúvo. Quando ela tinha 76 anos (ele tinha 79), ela ficou viúva. E ficou sabendo que ele estava vivo. A curiosidade e a saudade foram fortes demais. Foi procurá-lo. Encontraram-se. E, de repente, eram namorados adolescentes de novo. Resolveram casar-se.

Os filhos protestaram. Eles, os filhos, todos os filhos, não suportam a idéia de que os velhos também têm sexo. Especialmente os pais. Pais velhos devem ser fofos, devem saber contar histórias, devem tomar conta dos netos. Mas velho apaixonado é coisa ridícula. Não combina. Mais detalhes no livro da Simone de Beauvoir sobre a velhice. E houve também aquela história do programa Você decide: o velho pai, infeliz a vida inteira com a esposa, encontra uma mulher por quem se apaixona. A pergunta: ele deve ou não deve deixar a esposa para viver o novo amor? Você decide… A decisão do público — os filhos, evidentemente: “Não, ele não deve viver o novo amor…” Os filhos sempre decidem contra o amor dos pais. Mas, na nossa história, os dois velhos deram uma solene banana para os filhos e foram viver juntos em Poços de Caldas.

E de repente, já no crepúsculo, as arvores que todos julgavam secas começam a soltar brotos, florescem. Viveram um ano de amor maravilhoso, e ele até começou a escrever poesia e voltou a tocar o violino que ficara por mais de 50 anos sobre um guarda roupa, porque a esposa não gostava de música de violino. Reaprendeu as antigas palavras de amor. Confessou ao sobrinho: “Se Deus me der dois anos de vida com esta mulher, minha vida terá valido a pena…” Bem que Deus quis. Mas o corpo não deixou. Não teve dois anos, teve um… E eu fiquei pensando que esse um ano pode ter sido semelhante àquelas experiências raras que a gente tem, e que fazem brotar, do fundo da alma, aquele grito de exultação, a la Zorba: "Valeu a pena o Universo ter sido criado, só por causa disto!"

E foi o mesmo que aconteceu com T.S.Eliot, que só encontrou o seu amor aos 68 anos, e aos 70 anos dizia que, antes do casamento, estava ficando velho. Mas agora se sentia mais jovem do que quando tinha 60.

O amor tem esse poder mágico de fazer o tempo correr ao contrário. O que envelhece não é o tempo. É a rotina, o enfado, a incapacidade de se comover ante o sorriso de uma mulher ou de um homem. Mas será incapacidade mesmo? Ou será uma outra coisa: que a sociedade inteira ensina aos velhos que o tempo do amor passou, que o preço de serem amados por seus filhos e netos é a renuncia aos seus sonhos de amor? Morreu de amor, como temia o Vinícius.

Compreendi a felicidade do meu amigo. E também fiquei feliz. Aquele velório foi como o acorde que se toca ao fim de uma sonata: a culminância da felicidade. Interessante que, como regra, o movimento final das sonatas é um allegro. Para trás dos adágios lamentosos! A conclusão deve ser um orgasmo de alegria. E se eu pudesse, acrescentaria aos textos sagrados, nos lugares onde os profetas tem visões de felicidade messiânica, esta outra visão que eu penso até o próprio Deus aprovaria com um sorriso: “E os velhos se apaixonarão de novo…”

Começa aqui o novo final para a história. Passaram-se semanas. Eram dez horas. Eu estava trabalhando no meu escritório. O telefone tocou. Voz aveludada de mulher do outro lado.

— É o professor Rubem Alves?

— Sim, respondi secamente. Eu sou sempre seco ao telefone.

— Quero agradecer a belíssima crônica que o senhor escreveu com o título: ” …e os velhos se apaixonarão de novo”. O senhor já deve ter adivinhado quem está falando….

— Não, respondi. Por vezes eu sou meio burro. Aí ela se revelou:

— Sou a viúva.

Foi o início de uma deliciosa conversa de mais de 40 minutos, interurbano, em que ela contou detalhes que eu desconhecia. O medo que ela teve quando ele resolveu mandar consertar o violino! Ela temia que os dedos dele já estivessem duros demais… Ah! Que metáfora fascinante para um psicanalista sensível! Sim, sim! Nem os violinos ficam velhos demais, nem os dedos ficam impotentes para produzir música! E aí foi contando, contando, revivendo, sorrindo, chorando — tanta alegria, tanta saudade, uma eternidade inteira num grão de areia… Ao terminar, ela fez esta observação maravilhosa:

— Pois é, professor. Na idade da gente, a gente não mexe muito com sexo. A gente vive de ternura!

O que me fez lembrar a observação de Kundera sobre a necessidade “de salvar o amor da tolice da sexualidade”. A sexualidade pertence à ordem da poesia. Abelardo e Heloisa se amaram até a morte.
 
© Rubem Alves

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